Telefonemas

De ANA CRISTINA MELO (*).

Estava deitado na cama, a atenção em seu Flamengo que vencia o Cruzeiro, no Mineirão. A posição do time no campeonato era menos inglória do que sua performance sexual nos últimos tempos. Pudera: há doze meses se submetia a todas as insanidades da mulher, para garantir que conseguiriam o bebê tão desejado por ela. Não lhe era má a idéia de um filho, mas não podia imaginar que se esfalfaria de praticar o sexo para conseguir esse rebento.

Tudo começara com o decreto: “quero um bebê”. Estavam então há dois anos casados; emprego estável para ambos, maturidade na casa dos trinta, apartamento jeitoso no Catete, e não havia motivos para desprezar o projeto.

Como primeira providência, pílulas no lixo. Vera aumentara ainda a freqüência das relações para dias alternados. Elias, algumas vezes sucumbindo ao desgaste do dia, pedira trégua, o que gerou um pequeno terremoto, com acusações de desprezo ao filho que nem nascera, de insensibilidade com a aflição da mulher, e de estar falhando com suas obrigações. Paz sempre fora seu lema, e por isso lá ia ele, cansado, com sono, gripado ou murcho, buscar imaginação até mesmo fora da cama, para não permitir que a estrelinha deixasse de ser marcada no calendário. Teria valido a pena se Vera conseguisse engravidar. Três decepções e ela concluiu que um dos dois era estéril. Médicos foram procurados, Vera exigiu ressonâncias e espermogramas, os especialistas tentando convencê-la de que era muito cedo. Resultado: Elias foi obrigado a se submeter aos métodos conselhos-de-amigas.

A casa virou um laboratório amador de reprodução. Tabelas de ciclo menstrual coladas na parede do quarto, calendários presos na porta do banheiro, fitinhas para detectar o período fértil no criado-mudo e telefonemas enlouquecidos no meio do dia.

— Elias, desce agora.

— O quê, Vera? Onde você está?

— Prestes a ganhar uma multa se você não descer em dois minutos.

Eram dez da manhã. Longe da hora do almoço, mas disposto a não contrariá-la, Elias se deixou seqüestrar para um motel na Glória. Essa foi a primeira entre muitas vezes em que Vera percebeu, no meio do expediente, que estava em seu período fértil. Nesses dias, ele tinha medo de voltar para casa. Sabia que não dormiria antes das duas da madrugada, tendo ao seu lado um ser deitado com o quadril sobre quatro travesseiros e as pernas esticadas na cabeceira da cama.

Dois meses depois, a mulher decidira optar pelo método-retenção. Elias era obrigado a guardar os craques da seleção por vinte dias, para soltá-los todos numa única partida. Começou a entender como se sentem os jogadores durante uma concentração.

Fracassada essa fase, ela tentou o método exercício-diário, que foi terminantemente repelido. Já haviam riscado oito meses. Voltaram a um especialista. Exames nela, coletas de sêmen à base da Playboy, sangue de ambos e o veredicto de normalidade. O problema, se existia, estava na cabeça de sua mulher.

Vera concordou em abandonar calendários, fitinhas, medições de temperatura, e acatar um intervalo de dois dias para cada relação.

Ela não falava mais nada, mas havia três meses que Elias a percebia tensa durante alguns dias do mês. Início da crise que culminava ao ouvi-la chorando no banheiro, encontrá-la chorando ao chegar em casa, ou despertar com seu choro de madrugada. Ele se calava. Era melhor não declarar o que ambos já sabiam. Esperava o tempo de secagem, que durava mais cinco dias, e depois tudo voltava à normalidade.

O time do Cruzeiro acabara de virar o jogo quando Vera saiu do banheiro. Seus olhos estavam inchados e Elias se perguntou se ela havia ficado mais silenciosa ou se ele estava desligado do mundo. Estranhou os passos contidos da mulher e resolveu arriscar “está tudo bem?”. Ela se virou para ele com um olhar cortante e manteve-se muda. Tirou a camisola, vestiu jeans, camiseta, e jogou a bolsa no ombro. “Onde você vai?”, ele arriscou perguntar. Circular pelo Catete às dez da noite não era uma idéia muito inteligente. Ela não respondeu. Ele ensaiou em pensamento obrigá-la a dizer, mas desistiu. Imaginou que só quisesse espairecer. Não contava com a ligação uma hora depois, uma verdadeira catarse, xingamentos e a notícia de que ela havia ido embora.

Tentativas frustradas de consertar a rachadura daquele casamento, incluindo a proposta de adoção, rechaçada por Vera, e Elias decidiu sair, deixando o apartamento só para ela. Foi morar com um colega de trabalho. Em todo tempo, sentiu falta da mulher, por quem ainda era apaixonado. Inconformado, um pouco raivoso, buscou esquecê-la em noitadas com amigos solteiros e amigas dadivosas.

Seis meses de separação, e o telefonema de Vera. Pedia um encontro para acertarem os detalhes do divórcio. O que deveria ter sido o começo de um fim, teve num beijo a fagulha para a volta. Passaram a se encontrar depois do expediente, duas vezes por semana, reacendendo aos poucos o fogo do relacionamento.

Um mês depois, noite de sábado. Elias, mais comportado, estava assistindo a um jogo de seu time, em mais uma derrota. O telefone tocou. Ouviu o “volta pra casa, papai” que lhe nublou os olhos. Bastaram duas horas para que o armário do apartamento estivesse novamente lotado.

Comemoraram a nova família no lugar mais visitado da casa, ele desejando que ela não soubesse das muitas noites de solteiro-pós-casado, ela feliz por ter usado pelo menos uma vez a sugestão da amiga: o método material-alternativo.

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(*) Ana Cristina Melo mantém os blogs Canastra de Contos e Ficção de Gaveta.