Leandro Resende
O corpo no chão sem se importar se o dia lá fora anoiteceu ou a madrugada se foi. Este quase imóvel corpo decora a sala daquele apartamento inóspito. Nada de familiar ou amigo. Tudo constrange a quem chega. Mas não ocorrem tantas visitas. Só pizzas e putas. Poderia dizer a todos que aquilo era um mesa-de-centro, um aparador. Poderia colocar flores velhas ou porta-retratos vazios (ele não tinha família ou não se lembravam dele) ou um pano bordado ou um cinzeiro. Sem foi próprio de encostos e restos.
Aquela carne natimorta sonha com a escola e todos sorriem e correm uma bola e fazem fila para o lanche e sorriem correndo: a bola vai de um ao outro todos se abraçam e não demora fazem nova fila diante da cantina.
O corpo torto e vomitado é espelho do que lhe cerca. Absorve, reflete.
O corpo torto respira com dificuldade.
Copos e garrafas vazias. Pratos pelos cantos.
A TV ligada sem programação sem volume.
Nunca escuta o som da televisão: estragou.
Horas seguidas de respiração apertada. Dias, noites.
Sobe lenta a caixa torácica.
Desce.
Quase um descanso.
Fim do intervalo.
Sobe como se empurrasse o dia que lhe aperta.
Sobe lento.
Engasga.
Treme.
Gemido de leve dor. Inconsciente, talvez.
A cena é de morte.
Respiração trava.
Engasga. Catarro lhe tampa a garganta.
Caixa torácica dá um salto – todos os músculos contraídos.
Respiração entrecortada, sem fôlego.
Um afogamento no fundo da sala – onde não dá mais pé.
…e o ar acaba mas logo recomeça e logo acelera e logo acaba de novo e…
Olhos fechados.
Piscam. Tremem.
O ar quente e tenso sobe o pavilhão da garganta desesperado.
Preenche todo espaço. Acelera contra o muro. Veloz. Bate. Recupera força, ar, velocidade, bate novamente.
Explosão na garganta.
Nada.
Mais duas vezes. Ar quente contra catarro e vomito.
Primeiro escapa um barulho, depois esguicha líquidos.
Desentope.
Dói.
Cospe cores enormes no chão.
(Sangue talhado, catarro e vômito parado).
Uma nuvem de odores cobre a sala.
Na avenida, um carro atravessa com o som ligado.
Agora, parece uma criança dormindo.
O corpo, com o canto da boca, sorri – em transe.
Dá lugar na fila do lanche para a menina, aquela do ônibus, dos cabelos grandes, olhos grandes, cheios de vida. Ela sorri. Ele devolve o sorriso. Temos a vida pela frente, pensa.